Polarização leva os dois lados da disputa política no país a lerem a realidade de formas opostas; veja exemplos.
Por Carlo Cauti, G1
A extrema polarização política na Venezuela, com embate permanente entre apoiadores do presidente Nicolás Maduro e forças da oposição, fazem surgir versões muito diferentes, — muitas vezes totalmente opostas –, sobre os acontecimentos no país.
Veja abaixo cinco fatos relacionados à crise venezuelana e as versões dos dois lados:
Crise humanitária
“Na Venezuela não há fome, na Venezuela há força de vontade. Não há crise humanitária, aqui há amor”, afirmou a ex-chanceler e atual presidente da Assembleia Constituinte, Delcy Rodriguez, quando abriu os trabalhos da nova casa legislativa. Em uma ocasião anterior ela já tinha afirmado durante uma cúpula da Organização dos Estados Americanos (OEA), que “Não há crise humanitária na Venezuela”. “Digo isto com toda a responsabilidade”, acrescentou.
“Não há crise humanitária, aqui há amor”,
Delcy Rodríguez
A opinião dos opositores diverge totalmente da visão da chavista. Em janeiro de 2016, a Assembleia Nacional venezuelana – de maioria oposicionista — aprovou uma resolução em que explicita que o país se encontra em emergência humanitária, entre outras coisas, por causa de uma gravíssima crise sanitária ligada a falta de medicamentos e outros produtos básicos.
O documento exortou o Executivo de Maduro a abastecer as farmácias com medicamentos essenciais, publicar boletins epidemiológicos e permitir o envio sem fins lucrativos de remédios do exterior.
“Os venezuelanos hoje passam fome, morrem à míngua, são assassinados dentro de suas próprias casas”
Maria Corina Machado, oposicionista
“A crise humanitária chegou sim à Venezuela. Os venezuelanos hoje passam fome, morrem à míngua, são assassinados dentro de suas próprias casas. Sem luz, sem água, sem transporte, sem emprego”, afirmou a líder opositora venezuelana Maria Corina Machado.
Assembleia Constituinte
Em maio de 2017, Maduro decidiu convocar uma Assembleia Constituinte para “vencer o golpe de Estado” que, segundo ele, seria a razão para a deteriorada situação econômica, política e social do país. De acordo com o anúncio, a Constituinte seria composta por “operários” e não por partidos políticos, sem, portanto, a intervenção do Poder Legislativo, controlado pela oposição ao chavismo.
“Convoco uma Constituinte cidadã. Não uma Constituinte de partidos políticos. Uma de trabalhadores, de camponeses”
Nicolás Maduro
“Assumo todas as consequências e chamo o povo para se preparar para uma grande vitória. Convoco uma Constituinte cidadã. Não uma Constituinte de partidos políticos. Uma de trabalhadores, de camponeses”, disse Maduro, ao invocar o artigo 347, que dá poderes ao chefe de Estado para tomar tais decisões. Segundo ele, a Constituinte seria integrada por 500 legisladores, dos quais 250 seriam eleitos por grupos setoriais como pensionistas, trabalhadores, camponeses, jovens e indígenas.
O presidente advertiu que legalmente os “poderes constituídos”, como a Assembleia Nacional, não poderiam se opor as decisões tomadas dentro da Assembleia Constituinte. “Querem diálogo? Poder Constituinte! Querem eleições? Poder Constituinte!”, provocou Maduro.
“Hoje temos a Assembleia Nacional Constituinte e venho a reconhecer os seus poderes plenipotenciários, soberanos, originários e magnos”, disse Maduro.
“Quando um país é governado com base numa enorme fraude eleitoral, tem uma Assembleia Constituinte que arrebata praticamente todos os poderes do Estado (…)não há, nesse país, nenhum vestígio de democracia”
Luis Almagro, secretário-geral da OEA
Para o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, Luis Almagro, que há tempos é duro crítico dos rumos tomados pelo governo venezuelano, a história é bem diferente: “Não há democracia na Venezuela. Quando um país é governado com base numa enorme fraude eleitoral, tem uma Assembleia Constituinte que arrebata praticamente todos os poderes do Estado, quando temos presos políticos, quando há políticos inabilitados, quando se suprimiu a independência dos poderes do Estado, quando nem Conselho Nacional Eleitoral e nem Tribunal Supremo de Justiça são poderes independentes e foram tirados todos os poderes da Assembleia Nacional, quando as pessoas saem para se manifestar e chegamos a 130 pessoas assassinadas durante manifestações, não há, nesse país, nenhum vestígio de democracia”, disparou numa entrevista recente.
Vitória oposicionista na Assembleia Nacional
As eleições parlamentares de 6 de dezembro de 2015 levaram a uma importante vitória da MUD e a uma derrota do partido governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Os opositores obtiveram 100 dos 167 assentos na Assembleia Nacional, enquanto a coalizão governista conquistou 46 assentos, perdendo quase a metade das cadeiras que tinha.
“Agora, teremos um Parlamento a serviço da burguesia. Da direita, não ouviremos nada que seja para favorecer o povo, pelo contrário”
Diosdado Cabello, líder chavista
Maduro atribuiu a responsabilidade da derrota à “guerra econômica” travada pela oposição apoiada pelos Estados Unidos contra o governo e a população da Venezuela. “A contrarrevolução triunfou, conseguiu impor seu próprio caminho, é uma guerra”, declarou no dia seguinte ao pleito o presidente venezuelano.
“Perdemos uma batalha hoje, mas a luta para construir uma nova sociedade socialista está apenas começando”, concluiu Maduro, que nunca reconheceu a legitimidade da eleição, acusou a oposição de fraudes e de “compra de votos”, e tentou impedir as atividades da Assembleia Nacional de diferentes formas.
“O país quer mudança e essa mudança está começando hoje”
Jesús Torrealba, líder da MUD
Do lado da oposição, ao contrário, a nova composição da Assembleia Nacional foi festejada como “uma vitória de toda a Venezuela”, segundo quanto declarado pelo líder da oposição Henrique Capriles. “Os resultados são como esperávamos. A Venezuela venceu. É irreversível”, declarou Capriles. “O país quer mudança e essa mudança está começando hoje”, declarou o líder da MUD, Jesús Torrealba.
Entretanto, o governo não aceitou passivamente esse resultado eleitoral. No dia antes da posse da nova Assembleia Nacional com maioria opositora, o regime venezuelano criou uma “assembleia paralela”, chamada Parlamento Comunal. Uma forma de coibir os poderes da Assembleia Nacional a maioria opositora. “Eu vou dar todo o poder ao Parlamento Comunal, e esse Parlamento será uma instância legislativa do povo desde a sua base”, declarou Maduro.
“Agora, teremos um Parlamento a serviço da burguesia. Da direita, não ouviremos nada que seja para favorecer o povo, pelo contrário”, afirmou o ex-presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Diosdado Cabello.
Crise econômica e desabastecimento
Há anos a Venezuela sofre com uma crise econômica e de desabastecimento, que se agravou ainda mais a partir de meados de 2014, quando o preço do petróleo caiu. A inflação venezuelana foi estimada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 720% em 2016. Números que o governo venezuelano nega com veemência, alegando que a inflação está “sob controle” e estaria por volta de 274% em 2016, conforme informado pelo Banco Central da Venezuela (BCV) ao próprio FMI.
Cerca de 9,6 milhões de venezuelanos – quase um terço da população – ingerem duas ou menos refeições por dia, e a pobreza aumentou quase nove pontos entre 2015 e 2016, chegando a 81,8% dos lares, segundo a Pesquisa sobre Condições de Vida, realizada por um grupo de universidades.
No entanto, Maduro assegura que em 2016 a pobreza baixou de 19,7% para 18,3%, e a miséria, de 4,9% a 4,4%. O presidente considera os problemas enfrentados pelo seu país fruto de uma “guerra econômica” provocada por “setores da direita, cujas táticas são gerar escassez de comida e necessidades de aumentar os preços de forma desproporcional”.
A oposição venezuelana, por sua vez, denuncia as políticas econômicas do governo e a corrupção dos altos escalões, que seriam as responsáveis por essa grave crise econômica.
“A fraude constituinte madurista é igual a mais fome, mais escassez e mais crise”, declarou Capriles após uma manifestação em junho de 2017.
Prisão de Leopoldo López
A prisão do líder opositor Leopoldo López, em 2014, foi classificada pela oposição como “ilegal” e “arbitrária”. O governo atribuiu a ele a responsabilidade de incitar a população à violência durante a onda de protestos ocorrida no mesmo ano para exigir. Os confrontos deixaram 43 mortos e centenas de feridos.
Preso desde fevereiro de 2014, López, líder do partido Vontade Popular, foi condenado no ano seguinte a 13 anos e nove meses de prisão.
A decisão do tribunal foi rejeitada pela aliança opositora Mesa da Unidade Democrática (MUD). “Rejeitamos a ratificação da condenação ilegal e injusta contra nosso irmão e reiteramos que será libertado pelo voto do povo”, declarou naquela ocasião o secretário-executivo da MUD, Jesús Torrealba, rejeitando a sentença, considerada como um “julgamento político”.
Maduro, por sua vez, disse que López tem que pagar pelos crimes cometidos. “Esse é um julgamento de um líder da extrema-direita da Venezuela, responsável por crimes, violências, destruições, e mortes. Ele planejou essa ação. É uma peça dos gringos na Venezuela. É responsável por esses crimes e deve pagar à Justiça, e vai pagar à justiça”, declarou.
Entidades internacionais como a Organização dos Estados Americanos, a União Europeia, e também ONGs como a Human Rights Watch (HRW) e Anistia Internacional (AI), condenaram a prisão de López. “As acusações contra Leopoldo López, líder de um partido da oposição venezuelana sugerem a existência de uma tentativa, politicamente motivada, de silenciar a dissidência no país”, informou a AI em um comunicado.