Categorias
MUNDO

Ucrânia é exemplo para região

A eleição do comediante Volodymyr Zelenskiy, de 41 anos, como presidente da Ucrânia apresenta diversas semelhanças com os movimentos que no mundo todo têm levado ao poder outsiders, em desafio aos políticos tradicionais. Mas há no caso ucraniano uma especificidade que o distingue dos demais.

No campo das semelhanças, a história de Zelenskiy fala por si só. Empresário por quinze anos, tornou-se nacionalmente conhecido como estrela do programa de TV Sluha Narodu (Servidor do Povo), série cômica que chegou este ano à terceira temporada, em que ele vive o professor do ensino médio Vasily Goloborodko.

Um vídeo em que Goloborodko critica os políticos como corruptos e despreza as mordomias associadas ao poder viraliza, e ele acaba eleito presidente. Exatamente como o ator Zelenskiy, que ao longo da campanha encarnou o personagem para vencer a eleição.

Seu sucesso foi avassalador. Pelos resultados preliminares do segundo turno realizado ontem, ele derrotou o atual presidente, Petro Poroshenko, por uma diferença em torno de 48 pontos percentuais (73% a 25%). Se Poroshenko disputou com base na sua tradicional plataforma nacionalista – seu slogan era “Exército. Fé. Língua” –, Zelenskiy é basicamente uma incógnita.

Espécie de mistura do italiano Beppe Grillo com o francês Emmanuel Macron, ele combina ingredientes antagônicos.

De um lado, é o candidato da geração que foi à Praça Maidan protestar em 2014 e derrubou o governo pró-russo de Viktor Yanukovich, que desistira de aderir à União Europeia (UE).

De outro, é visto como simpático à Rússia pelos adversários. Eles temem que sua disposição em negociar para encerrar a guerra – mais de de 13 mil morreram no conflito que ainda engolfa o leste do país – resulte na anuência à anexação da Crimeia pela Rússia.

De um lado, sua campanha seguiu à risca a receita de combate à corrupção, facilitada pela sucessão de escândalos que assolam o país. O último deles envolve a Ukroboromprom, fabricante de armas controlada por aliados de Poroshenko. Um mês antes da eleição, o presidente obteve da Corte Constitucional o cancelamento da lei contra o enriquecimento ilícito, isentando dezenas de aliados de enfrentar acusações de corrupção.

De outro, é próximo do oligarca Ihor Kolomoiskiy, proprietário do canal de TV que veicula seu programa humorístico. Kolomoiskiy saiu do país e se exilou em Israel depois que o governo Poroshenko nacionalizou seu banco, o PrivatBank, com base em acusações de desvio de mais de US$ 5 bilhões dos correntistas.

As dúvidas que cercam o futuro governo Zelenskiy são as mesmas que afligem todo novato inexperiente, que chega ao poder depois de surfar uma onda de popularidade erguida à custa da TV e das redes sociais. A principal diz respeito a sua relação com o Legislativo.

Vigora na Ucrânia, a exemplo da França, um regime semi-presidencialista. O presidente detém o comando das Forças Armadas, da política externa e da segurança. O primeiro-ministro controla o Orçamento e a política econômica.

A eleição para a Verkhovna Rada, o Parlamento unicameral com 450 representantes, ocorrerá em outubro. O êxito de Zelenskiy dependerá de sua capacidade de articulação política com os parlamentares e do papel de seu partido, chamado Sluha Narodu como o programa de TV, no gabinete do futuro primeiro-ministro.

Dois desafios serão prioritários. O primeiro é econômico. O PIB ucraniano caiu 17% nos primeiros dois anos de guerra com a Rússia. Só começou a se recuperar em 2016. Desde 2015, o país depende de um pacote do Fundo Monetário Internacional (FMI) para rolar suas dívidas. Ele foi suspenso e renovado em janeiro, mesmo assim os ucranianos não têm cumprido seus termos. Renová-lo será essencial.

O segundo desafio é pôr fim à guerra, para reintegrar a Ucrânia ao mercado global. É nesse ponto que Zelenskiy apresenta uma diferença essencial dos demais outsiders eleitos mundo afora – de Donald Trump a Jair Bolsonaro. Enquanto quase todos devem sua vitória à plataforma nacionalista, na Ucrânia a população resiste a ela.

Basta ver a derrota fragorosa da campanha nacionalista de Poroshenko e o desempenho lastimável de partidos ainda mais nativistas. A parcela mais expressiva da extrema-direita, por sinal, decidiu apoiar Zelenzkiy, em virtude de seu discurso de combate à corrupção.

Ao contrário de outros países do Leste Europeu, a Ucrânia não sofreu influxo de imigrantes. Ao contrário, o problema é a emigração: ucranianos saem do país em busca de uma vida melhor noutras terras, enfraquecendo a economia. A ameaça óbvia é a Rússia, ali do lado, contra quem persiste a guerra na região do Donbass.

A opção ucraniana, expressa nas urnas desde os protestos da Praça Maidan, é a aproximação da UE e o afastamento da Rússia. O caminho para chegar lá, em especial o fim da guerra, é a maior dúvida. Pelo menos, tem sido um caminho livre e democrático, como demonstra a votação de ontem. Um alento e um exemplo, numa região em que outros países escolheram autocratas que minam a democracia.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *